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O mundo vai desdolarizar?

Por Ecio Costa, professor e economista*

Recentemente, o presidente Lula questionou por que todos os países devem estar ligados ao dólar americano em vez de negociar em suas próprias moedas. Os países do BRICS também chegaram a acordos para negociar entre si em suas moedas locais.

Isso significa que o processo de desdolarização já começou? Há décadas se fala sobre a desdolarização da economia mundial, mas isso nunca acontece de fato. Para entender o porquê e quais são os verdadeiros obstáculos a serem superados para uma desdolarização efetiva de nosso sistema monetário, é necessário compreender como o sistema financeiro internacional, ancorado no dólar, funciona.

Em um sistema econômico globalizado, o objetivo é negociar com o maior número possível de parceiros e isso deve ocorrer de maneira integrada. Quando o Brasil exporta commodities para a China ou o Japão, e o comércio é realizado em dólares, o Brasil acumula essa moeda como pagamento pelas exportações.

Isso significa que atualmente o dólar é a moeda global preferida, sendo utilizado em mais de 80% das transações cambiais globais e em 50% ou mais das negociações e pagamentos internacionais. Nos últimos 30 anos, as moedas concorrentes não conseguiram alterar esse domínio expressivo.

A predominância do dólar como moeda veículo ocorre porque não é fácil substituí-lo por outra moeda que cumpra o papel de moeda de reserva global.

Ao analisar inicialmente como um ativo, quando o Brasil exporta commodities em dólares mais do que gasta em dólares para importar outros itens, o país acumula reservas cambiais em dólares. Esses dólares entram no sistema bancário doméstico e, por fim, o Banco Central é responsável por gerenciar um colchão de reservas cambiais, mantendo os dólares seguros e líquidos.

Para manter o dinheiro seguro e líquido, é necessário evitar o risco de crédito e investir em mercados sólidos e líquidos que garantam um alto volume de negócios sem contratempos, se necessário.

O Tesouro dos EUA se destaca como líder global nesse mercado, com um tamanho superior a US$ 20 trilhões, apresentando liquidez e sendo sustentado por um profundo ecossistema de recompra que preenche todos os requisitos. Suas principais características incluem a ausência de controle de capital, interferências democráticas e a existência de um Estado de Direito que assegura seu uso.

A ampla oferta de títulos do Tesouro dos EUA supre as necessidades do restante do mundo, fornecendo um ativo seguro e líquido para reciclar os rendimentos em dólares provenientes dos negócios globais. Conforme os negócios internacionais aumentam, o mundo demanda cada vez mais títulos do Tesouro. O Brasil, por exemplo, concentra grande parte de suas reservas cambiais em dólares, através de títulos do Tesouro americano.

Mas quais seriam as alternativas potenciais para o dólar e os títulos do Tesouro americano? O Japão poderia ser uma opção? Mais de 60% do mercado de títulos do governo é absorvido pelo Banco Central do Japão, e há pouca liquidez em seu mercado de câmbio. A Europa seria uma alternativa? O bloco possui uma união monetária, mas não fiscal, e os países, em sua maioria, estão passando por políticas de austeridade há décadas.

E quanto aos principais países do BRICS: China? Brasil? Rússia? Na China, há um forte controle de capital. Na Rússia, falta democracia e Estado de Direito. Já no Brasil, há corrupção e episódios frequentes de inflação de dois dígitos, com políticas fiscais expansionistas e déficits recorrentes. Que país estaria disposto a correr esses riscos ao armazenar suas reservas cambiais escassas, que foram acumuladas com a venda de produtos e serviços no exterior?

E a criação de uma moeda comum do BRICS, que representa uma parte significativa do comércio internacional? Os riscos se multiplicam, uma vez que os principais países membros apresentam todos os problemas mencionados anteriormente.

A verdade é que atualmente os títulos do Tesouro dos EUA não têm um concorrente válido como veículo global para investir reservas cambiais. Para os EUA, estar nessa situação também é complexo. Eles precisam fornecer um ativo cada vez maior e líquido onde a moeda estrangeira possa reciclar suas reservas cambiais.

E isso também se aplica ao outro lado da moeda: a dívida. Os países estrangeiros também desejam tomar empréstimos em sua própria moeda. A dívida externa em dólares é enorme e torna uma desdolarização ordenada nada mais do que um sonho. Entidades fora dos EUA acumularam US$ 12 trilhões em dívidas denominadas em dólares. Isso ocorre porque, para financiar negócios globais que vendem em dólares, é necessário ter dívidas em dólares. É fundamental compreender este conceito: para atingir o objetivo de romper com esse sistema e desdolarizar, será necessário desalavancar um sistema de dívida de US$ 12 trilhões.

Mas e se o Brasil decidir sair do sistema global do dólar de um dia para o outro? Ao desalavancar um sistema baseado em dívidas (no caso, em dólares), o país teria que aumentar o denominador da dívida (o dólar) ou testemunhar eventos geopolíticos tectônicos (como guerras), onde a ordem mundial estaria em jogo.

Nesse caso, as empresas brasileiras seriam forçadas a apostar em dólares para tentar honrar o pagamento de suas dívidas, também em dólares, ou ficariam inadimplentes, perdendo qualquer credibilidade e acesso aos mercados internacionais de crédito.

Uma verdadeira desdolarização do nosso sistema monetário pode e irá ocorrer ao longo do tempo, porém não será uma transição ordenada. Será acompanhada por eventos geopolíticos significativos e a transição para outro sistema poderá ser extremamente dolorosa. É por isso que continuaremos a ouvir falar de uma transição suave, embora essa transição possa nunca se concretizar.

*Artigo adaptado do texto escrito por Alfonso Peccatiello, CEO, The Macro Compass

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